Por @RubensTeixeira*
A (in)constitucionalidade
Os argumentos que sustentam a eventual constitucionalidade do Exame de Ordem estão relacionados ao fato de que a Constituição não o veda. Uma lógica do Direito Penal emprestada, indevidamente, para analisar, sob a ótica do Direito Constitucional, o Exame da Ordem. Se não é vedado, pode.
Comparar o acesso à profissão liberal de advogado às funções públicas como ministério público, advocacia e defensoria públicas é desconhecer as razões de necessidade de concurso para se ocupar tais cargos de natureza permanente. Este respeitável argumento, utilizado pelos defensores do Exame da Ordem, é importante para mostrar a ausência de um melhor.
A eventual constitucionalidade do Exame pode ser comparada à excludente de ilicitude nos casos de furto famélico e de legítima defesa. Não é punível, mas sua ocorrência é indesejável. Se a OAB entendesse, de forma inabalável, ser necessário o exame que aplica, defenderia, a favor da cidadania, de forma aberta, firme e bem fundamentada, avaliação análoga para outras profissões. A avaliação seria mais necessária para profissões que não exigem formação acadêmica controlada pelo MEC, mas, se exercidas de forma inadequada, podem gerar insegurança ao usuário do serviço, como profissões em que o aprendizado se dá sem a obrigação de se realizar cursos específicos.
Existem inúmeras inconstitucionalidades a serem apontadas. Desde a usurpação da função do MEC, explicada mais abaixo, até a da própria Presidência da República no caso da regulamentação do Exame da OAB pelo Conselho Federal. O artigo 84, IV, da Constituição da República concede ao chefe, ou à chefe, do Executivo esta prerrogativa de forma privativa. Acredito não ser relevante o argumento de que a Lei 8.906/94 concede tal atribuição regulamentar ao Conselho Federal da OAB, tendo em vista a flagrante inconstitucionalidade do referido dispositivo. Na falta de outro, seria um bom argumento até submeter o dispositivo legal à avaliação da Carta Magna. Essas inconstitucionalidades dilaceram vários outros direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Lei Maior, como o direito ao trabalho, à vida, que serão abordados mais a frente, além de outros, como o da dignidade da pessoa humana.
Recorrendo a uma ilustração, seria como alguém comprar três pratos de comida e, mesmo que não consiga comê-los sozinho, não oferecer um dos pratos a outra pessoa que estivesse morrendo de fome ao seu lado. Caso o esfomeado esteja passando mal, se o que se empanturrou com os três pratos ligar para o SAMU, ou para o Corpo de Bombeiros, não poderá ser enquadrado como criminoso por omissão de socorro. Neste exemplo, não houve crime ou ato inconstitucional, pois seu direito à propriedade lhe permite comer três pratos e deixar o moribundo morrer de fome, mesmo que o glutão passe mal de tanto comer e também precise de socorro. Essa aberração é constitucional, pois o valor moral e ético reprovável não é contemplado nesta análise de constitucionalidade. Se alguém entender que o Exame de Ordem também o é, será ainda menos constitucional que o exemplo acima, pois o dano atinge a muitos e provoca, além do sofrimento físico, o sofrimento psicológico.
A inconstitucionalidade é demasiadamente evidente. Difícil é arrumar argumentos jurídicos admissíveis para descaracterizá-la.
A moral e a ética
O Exame de Ordem não é muito debatido sob a ótica da moral e da ética. Qual seria o melhor argumento moral ou ético para defendê-lo? A necessidade de proteger os cidadãos usuários da advocacia seria um bom argumento. Contudo, torna-se inconsistente quando nos deparamos com casos de advogados detentores da carteira da OAB que se envolvem com práticas criminosas, como profissionais de outras áreas por vezes também o fazem.
Todavia, como a OAB parece se propor de forma mais consistente a garantir o bom nível dos advogados, deveria realizar, para o ingresso e, periodicamente, uma pesquisa social para analisar os valores morais e éticos praticados pelos seus membros.
Um advogado precisa ser um bom comunicador, negociador, paciente e comprometido com o cliente. Como uma prova escrita avalia estes requisitos? Considerando que sobre leis, doutrinas e jurisprudências os bacharéis já foram testados nas faculdades, fiscalizadas pelo MEC, talvez o Exame de Ordem devesse ser uma avaliação psicotécnica e profissiográfica, voltada à qualificação em requisitos não analisados nas faculdades, jamais uma prova escrita com “pegadinhas ensinadas em cursinhos”, nem sempre presentes nas situações reais da advocacia.
Além do questionamento ético-moral que finalizou o parágrafo anterior, vejo que a avaliação não cumpre a finalidade supostamente pretendida, mas possui um formato capaz de controlar o número de aprovados, pela dificuldade das provas. O modelo só se justificaria se a pretensão fosse, efetivamente, limitar o ingresso de novos profissionais, como se houvesse limite de vagas, resguardando o mercado para os já atuantes.
Outrossim, o aprovado faz uma prova específica para uma área e é habilitado a advogar em todas as demais. Ora, a avaliação deveria habilitar apenas para uma área, não para todas. Se o teste é para aferir a competência do profissional, a habilitação deveria ser apenas para a área avaliada e poderia ser dada a opção de se habilitar em várias, desde que fosse aprovado em cada uma delas. Com o tempo, as pessoas esquecem muitas coisas que aprenderam. As leis, a doutrina e a jurisprudência evoluem. Muitos profissionais não se atualizam. Por essas razões, se o Exame fosse necessário, deveria também ser periódico, além de ser por área de atuação.
Soma-se a esses fatores a problemática referente à grande arrecadação de recursos financeiros provenientes das inscrições. Esta verba, em sua maioria, advém de candidatos desempregados que lutam, com poucas forças e recursos, para ingressarem no mercado de trabalho. Nesse sentido, a reprovação em massa produz dois efeitos perversos: impede o ingresso de novos profissionais no mercado e garante um número maior de candidatos no concurso seguinte, propiciando uma arrecadação mais “robusta”. Não sei exatamente porque esse tipo de concurso, de constitucionalidade e moralidade discutível, não é gratuito. Ao contrário, possui uma taxa de inscrição mais cara que o concurso para Juiz de Direito.
Estima-se que há no Brasil cerca de 800 mil advogados inscritos na OAB e cerca de 1 milhão e 600 mil bacharéis em Direito que não podem exercer a advocacia por não terem logrado êxito em ser aprovado no Exame da Ordem. Se o exame for abolido, o número de advogados será de, aproximadamente, 2 milhões e 400 mil, o triplo da quantidade atual de advogados. Aumentaria a competitividade e a disponibilidade de profissionais no mercado. Com relação ao controle da qualidade dos profissionais, é evidente que, se os órgãos de classe fossem responsáveis pela capacitação técnica dos profissionais já formados, a habilitação deveria ser por tempo determinado e, vencido o período, nova avaliação deveria ser feita para aferir a atualização do profissional. Por estas e outras razões não elencadas, é evidente que a OAB funciona como um partido político para defender os interesses dos advogados que estão no mercado e que pagam as suas anuidades.
O ataque ao Direito Fundamental ao Trabalho
Poderiam ser identificadas aqui diversas razões, mas enfatizo uma: o Exame é um veemente ataque contra o direito fundamental ao trabalho e, conseqüentemente, à vida. Isso porque os bacharéis, ao serem impedidos de exercer a profissão de advogado, têm os seus recursos para subsistência, advindos do trabalho, comprometidos. Tal fato, em tese, afeta sua condição de sobrevivência. Portanto, em última análise, o Exame de Ordem, além de outros direitos fundamentais, ataca o direito mais caro do ser humano: o direito à vida. A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê no art. XXIII – 1. “Toda pessoa tem o direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. Neste caso, há a proteção do emprego de uma minoria em prejuízo do emprego de uma maioria, em sintonia com o que diz o ditado popular: “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”.
A geração de constrangimento pessoal e a usurpação das atribuições do MEC
Para um profissional que se formou em uma universidade ou faculdade autorizada a funcionar pelo MEC, cumprindo todas as etapas do curso, é constrangedor ser reavaliado por uma instituição que não tem competência legal, nem técnica, talvez, tendo em vista que contrata instituições especializadas em concursos públicos para avaliar em seu nome. Mais sério ainda é perceber que sequer a metade dos formados conseguem transpor a barreira estabelecida. Imaginar que a maioria dos bacharéis que concluem o curso de Direito não teriam condições mínimas de exercer a profissão, pelo menos em questões de menor complexidade, é, no mínimo, um exagero, tendo em vista que nem formação em Direito se exige para pleitear demandas pessoais de até 20 salários mínimos em juizados especiais cíveis. O Exame impõe um crivo, terceirizado a instituições que aplicam a prova, sobre uma atribuição pertencente a um órgão do governo que detém a expertise e a competência de fazer as verificações cabíveis para a aquisição de uma titulação acadêmica: O MEC. O art. 209, II, da Constituição Federal prescreve que o ensino terá “autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”. Claro, por meio dos seus órgãos competentes.
Além de colocar-se, mesmo que de forma implícita e indevida, sobre o Ministério da Educação - MEC, o Exame usa um critério tecnicamente incorreto para avaliar a qualificação de um profissional no exercício de sua profissão, servindo apenas para controlar o ingresso de profissionais no mercado. Quem defende que deve haver um exame com outro formato, está admitindo que este está equivocado e, em razão disto, produz danos irreparáveis aos que foram e são impedidos de exercer a advocacia por conta de um crivo errado e ruim.
O argumento de que o Exame da OAB é requisito para o exercício da profissão e não um impedimento parece soar bem em um primeiro momento. Todavia, o que se dirá de um requisito em que a maioria dos que se graduam em faculdades autorizadas a funcionar pelo MEC não conseguem cumprir? Porque outros requisitos ao bom exercício da advocacia, como comentado mais acima, não são avaliados? Porque a inscrição é tão cara? Porque a OAB não auxilia o MEC a resolver as deficiências que alega existir? Porque não defende aplicação análoga em outras profissões, especialmente às que não admitem recursos, como apelação, agravo, recursos especial ou extraordinário, e os erros dos seus profissionais podem levar à morte, como médicos, engenheiros, eletricistas, e outras?
Essa situação torna-se coletivamente vexatória, em especial, porque o advogado é a única profissão que a Constituição da República diz ser indispensável à justiça (art.133) e usa um artigo inteiro para falar da profissão e suas prerrogativas. Se nosso país fosse modelo em justiça e igualdade social, este ataque seria apenas contra os bacharéis impedidos de exercer a profissão. Como precisamos avançar muito no combate à desigualdade e à injustiça social, esta agressão é, também, contra as pessoas que não têm acesso à justiça por falta de advogados em um mercado controlado por uma instituição que deixa de cooperar efetivamente com a justiça, ao impedir, arbitrariamente, que novos profissionais, devidamente certificados pelo Estado, ingressem no mercado.
É fácil aferir esta afirmação. Basta visitar uma comunidade pobre e verificar quantas demandas judiciais potenciais existem por lá, direitos sendo vilipendiados, mas não há advogados, pois não há interesse dos profissionais existentes de contemplarem demandas de pequenos valores ou que não resultará em ganhos condizentes com as suas pretensões. Ressalto que isto não é uma crítica aos advogados que militam para garantir a sua sobrevivência e, ao fazê-lo, pensam em suas necessidades pessoais de subsistência e não realizam trabalhos que não lhes garantiriam os recursos que precisam para se manter nos padrões de vida que possuem. Os demais profissionais em geral não fazem diferente. Contudo, é uma reflexão para que se perceba que a sociedade necessita de um número maior de advogados. Seria mais democrático ter advogados mais modestos do que não ter algum que defenda parte da população. Dizer que pessoas pobres podem recorrer às Defensorias é desprezar a realidade desses órgãos já sobrecarregados.
Talvez seja necessário fazer uma reflexão mais profunda sobre o conhecido lema da OAB: "Sem advogado não há justiça, sem justiça não há democracia". Assim, com mais advogados teríamos mais justiça e mais democracia e, naturalmente, com menos advogados, menos justiça e menos democracia. Não sei exatamente qual é o outro valor desse lema para a OAB, se não o que o vernáculo da língua portuguesa parece sugerir.
Uma prova não é instrumento adequado para avaliar a competência de um profissional desempenhar bem o seu papel. Aliás, já é de conhecimento dos especialistas que, além da competência, nem sempre bem avaliada em provas, a inteligência emocional tem forte influência no desempenho profissional de uma pessoa, além da capacidade de superar adversidades.
O que pode ser demonstrado através de um exame escrito é a capacidade de alguém resolver uma situação objetiva com condições preestabelecidas e, em geral, com condicionamento prévio, afastado de muitas circunstâncias que um caso real implicaria. Um bom condicionamento em cursos preparatórios, em geral, permite alcançar essa aptidão. Nem sempre os que treinam soluções tão objetivas, como as de uma prova, possuem discernimento, paciência e até conhecimento para resolver com maestria uma situação real, na prática.
Fiz seis cursos acadêmicos de graduação e pós-graduação. Jamais fui reprovado em quaisquer disciplinas de quaisquer cursos que fiz, desde a infância. Contudo, não são essas provas que me dão garantia de resultado no trabalho, mas minha capacidade de utilizar os conhecimentos que adquiri, e assimilar outros que surgem no dia a dia, nas situações que ocorrem, muitas inéditas. Fiz prova da OAB no décimo período da faculdade quando terminava, simultaneamente, doutorado em Economia e graduação em Direito, no mesmo semestre. Tive a minha tese de doutorado e monografia premiadas e passei na OAB-RJ, mas isso não me faz melhor profissional do que os que não passaram.
Serei bom profissional se no exercício das minhas atividades meus resultados forem bons para a minha organização, se eu fizer as pessoas sentirem-se bem ao trabalhar comigo, e em conjunto produzirmos o bem para a humanidade. Isto pouco, ou nada, tem a ver com desempenho em provas, pois o conhecimento evolui a todo instante e em curto espaço de tempo uma eventual avaliação que fosse aplicada se tornaria obsoleta.
Para quem veio da pobreza extrema, trabalhou em obras, vendeu ferro-velho, pouco usava cadernos para anotar, fez exercícios em papel de pão, foi desacreditado muitas vezes, foi chamado de semi-idiota e aconselhado e vender Mirabel, como eu, não poderia deixar de lado esta causa que, por obrigação moral, me manifesto. Como não me importo muito com ofensas e não me constrange falar ou gritar sozinho, resolvi escrever este artigo em defesa dos que tem a voz amordaçada pelo constrangimento, pela vergonha e pela injustiça. Em defesa de alguns que terminaram a sua faculdade com dificuldades e querem prestar seus serviços para quem quiser lhes contratar, sem que qualquer pessoa seja obrigada a isso. Como o primeiro livro que li, por completo, foi a Bíblia, finalizado aos nove anos de idade, não poderia me furtar em citá-la neste final, tendo em vista que foi nela que encontrei forças para enfrentar os desafios que me foram impostos. Deixo as palavras de Salomão “Quem segue a justiça e a lealdade encontra vida, justiça e honra”. Provérbios 21.21. Espero que seja na raia da justiça e da lealdade que este debate seja percorrido, para que todos tenhamos as nossas vidas e honras garantidas e possamos usufruir da justiça em seu sentido mais puro.
* Rubens Teixeira é doutor em Economia pela UFF, mestre em Engenharia Nuclear pelo IME, pós-graduado em Auditoria e Perícia Contábil pela UNESA, Engenheiro de Fortificação e Construção (civil) pelo IME, bacharel em Direito pela UFRJ (aprovado na prova da OAB-RJ) e bacharel em Ciências Militares pela AMAN. É membro da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra e da Academia Evangélica de Letras do Brasil.
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