Posted: 01 Jan 2013 12:11 PM PST
Do Vermelho - 1 de Janeiro de 2013 - 8h26“O direito de defesa vem sendo arrastado pela vaga repressiva que embala a sociedade brasileira. À sombra da legítima expectativa de responsabilização, viceja um sentimento de desprezo por garantias fundamentais.” Márcio Thomaz Bastos
“Nós entregamos aos nossos juízes – individualmente considerados— e aos tribunais, mais poder do que eles precisam para exercer suas funções.” Sérgio Sérvulo
Roberto Amaral
O
ministro Joaquim Barbosa declara em sua entrevista de final de ano — a
primeira de seu recém iniciado mandato, que não há Poder após o
Judiciário (e, aparentemente, nem antes…) e que suas decisões são
inapeláveis. Esqueceu-se de dizer, porém, que isso não as livra, as
decisões, de corrigenda, quando se trata de matéria criminal. É o caso
da anistia (C.F. arts. 21, XVII e 48, VIII), e é o caso do indulto e da
comutação da pena pelo presidente da República (C.F. art. 84, IX). E
não é só, pois o ministro Joaquim Barbosa e seus colegas não estão
acima do bem e do mal, eis que podem ser processados, julgados e
condenados pelo Senado nos crimes de responsabilidade (C.F. art. 52,
II). Podem, até, perder a toga.
Também os poderes do STF são susceptíveis de revisão. O Congresso Nacional pode emendar a Constituição (o que, aliás, tem feito com excessiva desenvoltura) e nela, até, alterar os poderes tanto dele próprio quanto do Executivo e do Judiciário. E pode ainda, o Congresso, legislar na contramão de um julgado do STF, e, assim, torná-lo sem consequência. Os poderes do Judiciário (como os do Legislativo e do Executivo), não derivam, na democracia, da ordem divina que paira, autoritária, sobre os Estados teocráticos, ou da ordem terrena das ditaduras. Atrás dos nossos Poderes, não está um texto de dicção divina, ou um texto datilografado por um escriba do tipo Francisco Campos ou Gama e Silva, mas um texto derivado de uma Assembleia, esta sim um Poder, o único, acima dos demais. Foi exatamente este Poder que, armado da força constituinte oriunda da soberania popular, ditou-lhe, ao STF, existência e a competência.
Não obstante, o Supremo brasileiro se atribui hoje o poder de dizer a primeira e a última palavra. O modelo é a Corte dos EUA, mas, se esta tem a ‘última palavra’ do ponto de vista jurídico, ela a pronuncia dentro dos estritos parâmetros que lhe são fixados pelo poder político, na legislação judiciária. Na Alemanha, na Espanha, em Portugal – adverte o jurista Sérgio Sérvulo – a suprema corte não tem regimento interno: o exercício de sua atividade é pautado em lei, e, com isso, se estabelece seu vínculo umbilical com o poder político.
Pouco entendendo de direito (convido o leitor a levantar os nomes dos dez últimos presidentes da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal), e, talvez por isso, votando ao STF um temor reverencial, nosso Congresso fica de cócoras ante o Judiciário, aprovando tudo o que se lhe pede (inclusive aumentos salariais): excrescências como as súmulas vinculantes e repercussões gerais, contra as quais tanto se bateu Evandro Lins e Silva.
De outra parte, esse mesmo Supremo deixou de exercer sua principal função – o controle difuso de constitucionalidade – liberando com isso as mãos dos tribunais e juízes ao arbítrio.
Não trago à discussão tema irrelevante, uma vez que (e dessa verdade muitos se descuidam) as consequências das decisões do STF, de especial nos julgamentos criminais, dizem respeito a todos os cidadãos, e não só aos julgados e condenados. Daí, para horror do pensamento autoritário, a sucessão de instâncias julgadoras e a sequência de recursos e apelações e agravos, que sugerem impunidade, mas que simplesmente atendem à necessidade de assegurar a todos ampla defesa. Na democracia só se condena com provas.
É que essas precauções inexistem no caso do STF, pois ele age, no mesmo julgamento, como primeiro e último grau, como promotor e juiz, e suas decisões constroem jurisprudência a ser observada por todos as demais instâncias. Assim, por exemplo, se, em uma determinada ação criminal, o desconsiderar a presunção de inocência (transformada em “presunção de culpabilidade”), estará condenando todos os acusados de todos os processos vindouros a provar a própria inocência, e não a simplesmente refutar a acusação; se em um determinado caso, o STF considerar dispensável a prova material para caracterizar a culpabilidade de determinado réu, estará dispensando a prova em todos os demais julgamentos.
Uma coisa, desejada, aplaudida, é a sadia expectativa de punição dos chamados ‘crimes de colarinho branco’; outra é a degeneração autoritária do direito criminal.
As decisões do STF, seja no caso da Ação Penal 470 decretando perda de mandato de parlamentares (competência privativa da respectiva Casa legislativa, C. F. art. 55), seja, à mesma época, intervindo na organização da pauta do Congresso mediante decisão monocrática em ordem liminar, assustam o pensamento democrático, que, cioso da importância da separação dos Poderes, reage ao papel de moloch autoritário que a direita quer emprestar ao Poder Judiciário brasileiro. Um dos mais perigosos movimentos desse autoritarismo que começa a quebrar a casca do ovo em que foi gerado, é a judicialização da política, a qual, se atende à fome voraz do Judiciário, é também acepipe que sai do forno dos partidos e do Congresso, seja pela omissão desse, seja pelo vício anti-republicano das oposições, das atuais e das anteriores (PT à frente) de recorrerem ao Judiciário, para a solução de impasses que não souberam resolver no leito natural da política.
De outra parte, a omissão legiferante do Congresso abriu lacunas legais ou criou impasses que foram levados ao Judiciário que, assim, ‘legislou’ e legislou (não discuto o mérito), por exemplo, no julgamento das cotas para negros nas universidades, na descriminalização do aborto de fetos anencéfalos e na legalização da união civil entre homossexuais. E legislou, então à larga, o STF sancionando decisões do TSE, que se auto-incumbiu de fazer a reforma política que o Legislativo postergou. Esse mesmo TSE se especializou em cassar mandatos.
No fundo a questão é esta: não há vazio de poder.
Na mesma entrevista citada no início deste artigo, o presidente do STF condena as promoções de juízes por merecimento, pois isso, diz ele, enseja a comprometedora corrida dos interessados atrás de apoios políticos. É verdade, mas não é a verdade toda, posto que não se aplica, apenas, à primeira instância. Em grau muitas vezes mais grave o ‘beija mão’ tem matriz na nomeação dos ministros dos tribunais superiores, principalmente do STF, com os candidatos em ciranda pelos vãos e desvãos do Executivo e do Senado à procura de apoios trocados por promessas de favores futuros.
Pede a democracia um Congresso revigorado, talvez o da próxima Legislatura – apto para realizar as reformas de que o Brasil necessita e uma delas é a reforma do Judiciário, livre da vitaliciedade monárquica, obrigado a trabalhar onze meses por ano, sujeito ao controle externo, como todos os demais Poderes republicanos.
* Roberto Amaral é cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
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Postado por celvioTambém os poderes do STF são susceptíveis de revisão. O Congresso Nacional pode emendar a Constituição (o que, aliás, tem feito com excessiva desenvoltura) e nela, até, alterar os poderes tanto dele próprio quanto do Executivo e do Judiciário. E pode ainda, o Congresso, legislar na contramão de um julgado do STF, e, assim, torná-lo sem consequência. Os poderes do Judiciário (como os do Legislativo e do Executivo), não derivam, na democracia, da ordem divina que paira, autoritária, sobre os Estados teocráticos, ou da ordem terrena das ditaduras. Atrás dos nossos Poderes, não está um texto de dicção divina, ou um texto datilografado por um escriba do tipo Francisco Campos ou Gama e Silva, mas um texto derivado de uma Assembleia, esta sim um Poder, o único, acima dos demais. Foi exatamente este Poder que, armado da força constituinte oriunda da soberania popular, ditou-lhe, ao STF, existência e a competência.
Não obstante, o Supremo brasileiro se atribui hoje o poder de dizer a primeira e a última palavra. O modelo é a Corte dos EUA, mas, se esta tem a ‘última palavra’ do ponto de vista jurídico, ela a pronuncia dentro dos estritos parâmetros que lhe são fixados pelo poder político, na legislação judiciária. Na Alemanha, na Espanha, em Portugal – adverte o jurista Sérgio Sérvulo – a suprema corte não tem regimento interno: o exercício de sua atividade é pautado em lei, e, com isso, se estabelece seu vínculo umbilical com o poder político.
Pouco entendendo de direito (convido o leitor a levantar os nomes dos dez últimos presidentes da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal), e, talvez por isso, votando ao STF um temor reverencial, nosso Congresso fica de cócoras ante o Judiciário, aprovando tudo o que se lhe pede (inclusive aumentos salariais): excrescências como as súmulas vinculantes e repercussões gerais, contra as quais tanto se bateu Evandro Lins e Silva.
De outra parte, esse mesmo Supremo deixou de exercer sua principal função – o controle difuso de constitucionalidade – liberando com isso as mãos dos tribunais e juízes ao arbítrio.
Não trago à discussão tema irrelevante, uma vez que (e dessa verdade muitos se descuidam) as consequências das decisões do STF, de especial nos julgamentos criminais, dizem respeito a todos os cidadãos, e não só aos julgados e condenados. Daí, para horror do pensamento autoritário, a sucessão de instâncias julgadoras e a sequência de recursos e apelações e agravos, que sugerem impunidade, mas que simplesmente atendem à necessidade de assegurar a todos ampla defesa. Na democracia só se condena com provas.
É que essas precauções inexistem no caso do STF, pois ele age, no mesmo julgamento, como primeiro e último grau, como promotor e juiz, e suas decisões constroem jurisprudência a ser observada por todos as demais instâncias. Assim, por exemplo, se, em uma determinada ação criminal, o desconsiderar a presunção de inocência (transformada em “presunção de culpabilidade”), estará condenando todos os acusados de todos os processos vindouros a provar a própria inocência, e não a simplesmente refutar a acusação; se em um determinado caso, o STF considerar dispensável a prova material para caracterizar a culpabilidade de determinado réu, estará dispensando a prova em todos os demais julgamentos.
Uma coisa, desejada, aplaudida, é a sadia expectativa de punição dos chamados ‘crimes de colarinho branco’; outra é a degeneração autoritária do direito criminal.
As decisões do STF, seja no caso da Ação Penal 470 decretando perda de mandato de parlamentares (competência privativa da respectiva Casa legislativa, C. F. art. 55), seja, à mesma época, intervindo na organização da pauta do Congresso mediante decisão monocrática em ordem liminar, assustam o pensamento democrático, que, cioso da importância da separação dos Poderes, reage ao papel de moloch autoritário que a direita quer emprestar ao Poder Judiciário brasileiro. Um dos mais perigosos movimentos desse autoritarismo que começa a quebrar a casca do ovo em que foi gerado, é a judicialização da política, a qual, se atende à fome voraz do Judiciário, é também acepipe que sai do forno dos partidos e do Congresso, seja pela omissão desse, seja pelo vício anti-republicano das oposições, das atuais e das anteriores (PT à frente) de recorrerem ao Judiciário, para a solução de impasses que não souberam resolver no leito natural da política.
De outra parte, a omissão legiferante do Congresso abriu lacunas legais ou criou impasses que foram levados ao Judiciário que, assim, ‘legislou’ e legislou (não discuto o mérito), por exemplo, no julgamento das cotas para negros nas universidades, na descriminalização do aborto de fetos anencéfalos e na legalização da união civil entre homossexuais. E legislou, então à larga, o STF sancionando decisões do TSE, que se auto-incumbiu de fazer a reforma política que o Legislativo postergou. Esse mesmo TSE se especializou em cassar mandatos.
No fundo a questão é esta: não há vazio de poder.
Na mesma entrevista citada no início deste artigo, o presidente do STF condena as promoções de juízes por merecimento, pois isso, diz ele, enseja a comprometedora corrida dos interessados atrás de apoios políticos. É verdade, mas não é a verdade toda, posto que não se aplica, apenas, à primeira instância. Em grau muitas vezes mais grave o ‘beija mão’ tem matriz na nomeação dos ministros dos tribunais superiores, principalmente do STF, com os candidatos em ciranda pelos vãos e desvãos do Executivo e do Senado à procura de apoios trocados por promessas de favores futuros.
Pede a democracia um Congresso revigorado, talvez o da próxima Legislatura – apto para realizar as reformas de que o Brasil necessita e uma delas é a reforma do Judiciário, livre da vitaliciedade monárquica, obrigado a trabalhar onze meses por ano, sujeito ao controle externo, como todos os demais Poderes republicanos.
* Roberto Amaral é cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
SARAIVA 13
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