Não é comum, pelo contrário, é inusitada, a oportunidade de ver e ouvir na mídia o relato orquestrado de um golpe político, anunciado com data, pano de fundo e artistas escolhidos a dedo para representar a grande tragicomédia batizada de mensalão.
Por Samuel Sergio Salinas*, no Vermelho
Tudo
estava pronto para o êxito dos autores e o desfecho em ritmo de gran
finale, com a virtude sobrepondo-se ao vício, num momento de glória do
interprete mor, em diapasão com o obscuro e retraído coautor do entrecho
que se desmanchou em sons e ruídos dissonantes.
O
desenlace, epílogo monumental da conspiração enunciada, ingressaria na
execução de um clímax que iria saldar todos os débitos do monstro
corrupção, bem simbolizado por coadjuvantes da ousada iniciativa de
enfrentar a dita branda dos reis e rainhas do grande cenário pátrio, em
passado ainda recente.
O medo de sempre esteve
nos bastidores onde se tramavam os momentos subsequentes do sonhado
epílogo e impediu que o espetáculo redundasse em drama da democracia,
renitente em beneficiar com votos os que propõem mudar o mundo. Dos
atores em cena, os que não se fiavam da democracia, o pior seria um
bálsamo a suavizar as duras feridas das eleições, mas o alvo era bem
maior, a pátria estremeceria com a prisão dos “criminosos”, o destino
estaria traçado para o momento em que a desordem desbaratasse o
progresso. Não houve, porém, como avançar, ante a maneira desassombrada
dos que se opuseram a cassações de mandatos, símbolo do que realmente se
pretende cassar os votos.
O mensalão
desdobrou-se em dois momentos. O primeiro, a elaboração do percurso
jurídico da empreitada processual-criminal. Para tanto se uniram os
supremos que buscavam ampliar o cenário com os mais lúgubres terrores da
mais rotunda desmoralização do Congresso por seus pares, relés
vendedores de seus mandatos, acoitados no templo da virtude onde só um
deles mereceria louvor pelo repúdio dos vendilhões.
O
Legislativo era o refúgio dos subversivos, assim denominados em fala
franca pelo ministro Celso de Melo, palavra dita numa rememoração dos
epítetos de vinte e cinco anos de destruição de mais de uma geração de
brasileiros. Desnecessário apurar, a velha ordem ressurgia, num espasmo
de linguagem. Desnecessário ouvi , comparar, basta apontar o dedo para
que todos saibam de onde surge o feio mal dos tártaros pululantes. O
desplante é a política e os políticos, é desta estampa que se busca
limpar as estribarias. Pereça a política e salva-se o bem do País com os
puros. Mortifica-se a razão, ora, a razão... O que ontem era a ratio
jurídica, esculpida em ouro e prata na amada Constituição, hoje é reles,
vil marafona, homiziando o mal que brotou do voto, mas pela espada, de
corte adusto, deve ser expungido do mundo dos vivos nas masmorras de
onde nunca deveria ter saído.
O voto justiceiro
de Celso de Melo, juiz mais antigo, de quem deveria brotar o vigor do
que disse na sua ainda jovem carreira, imolou-se no altar da mais atroz
das incoerências jurídicas, altar onde a ironia rivaliza com a
moralidade. Se duas são as razões da lei maior, ora optando por uma, ora
por outra, a razão decai em indignidade, sem falar na incerteza.
O
fundamento da lei é a razão, uma só a impor-se. Se duas são criadas, uma
delas é falsa. Vamos a Kant, pois um filósofo deste quilate merece
servir à causa de que razão, moral e liberdade caminham juntas, ou se
desfazem na poeira do caminho. É o imperativo categórico, muito
conhecido, mas nem sempre cultivado: “Obra de tal modo que la máxima de tu voluntad puede valer siempre al mismo tempo como principio de una legislación universal.”
A aporia é catastrófica, ao duplicar a vontade entre o ser ou não ser
da vida jurídica, devota da moral e da inteireza, que não compreende,
nem aceita, a dobrez de convicções díspares e contrapostas, muito menos
as admite nos tribunais ou fora deles.
No mensalão houve crimes que receberam sentença, e uma traição que ficou impune.
Preparou-se, durante anos, o desenrolar dos acontecimentos. Os atores, o momento, a jurisprudência de última hora, um julgamento estereotipado no modelo de Nuremberg, a mudança, também de última hora, de um voto decisivo que, na sua brutal incoerência, petrificou o tribunal, que ouviu mudo e quedo um dos discursos mais tristes da história judiciária brasileira.
Preparou-se, durante anos, o desenrolar dos acontecimentos. Os atores, o momento, a jurisprudência de última hora, um julgamento estereotipado no modelo de Nuremberg, a mudança, também de última hora, de um voto decisivo que, na sua brutal incoerência, petrificou o tribunal, que ouviu mudo e quedo um dos discursos mais tristes da história judiciária brasileira.
Os
indícios, lamentavelmente robustos, de que os propósitos não eram
somente condenar, mas ferir a democracia, que não é feita de juízos e
juízes inquisitoriais, ainda estão pendentes, embora desgastados pelo
tempo e a incoerência. O Supremo Tribunal, ressaltadas as exceções e
votos conhecidos, de senhoras e cavalheiros, ofereceu um espetáculo que
desmerece o que mais se pede nesses casos, a serenidade para o bem
julgar. Os acusados sofreram as maiores verrinas, que somaram aos
delitos as penas da infâmia.
Não há, não havia razão deste acréscimo
verbal, a não ser como forma de buscar nas invectivas o que não se
encontrava nos autos.
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