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As
elites costumam participar ou ser entretidas pelo show contra a
miséria, anualmente. Assim redimem-se de sua insensibilidade e
contribuem com alguns trocados em prol dos desamparados. Mas muitos
sonegam bilhões em impostos, o que assola a vida daqueles que fingem
ajudar... |
O País traídoEm
São Paulo, tempos ásperos. Leio: uma residência particular é assaltada
a cada hora, o roubo de carros multiplica-se nos estacionamentos dos
shopping centers. Entre parênteses, recantos deslumbrantes, alguns são
os mais imponentes e ricos do mundo. Que se curva. Um jornalão, na
prática samaritana do serviço aos leitores, fornece um receituário
destinado a abrandar o risco. Reforce as fechaduras, instale um sistema
de alarme etc. etc.
Em vão esperemos por algo mais, a reflexão séria
de algum órgão midiático, ou de um solitário editorialista, colunista,
articulista, a respeito das enésimas provas da inexorável progressão
da criminalidade. Diga-se que uma análise honesta não exige esforço
desumano, muito pelo contrário.
Enquanto as metrópoles nacionais
figuram entre as mais violentas do mundo, acima de 50 mil brasileiros
são assassinados anualmente, e um relatório divulgado esta semana pelas
Nações Unidas coloca o Brasil em quarto lugar na classificação dos
mais desiguais da América Latina, precedido por Guatemala, Honduras e
Colômbia. O documento informa que 28% da população brasileira mora em
favelas, sem contar quem vive nos inúmeros grotões do País.
Vale
acrescentar que mais de 60% do nosso território não é alcançado pelo
saneamento básico. Ou sublinhar a precariedade da saúde pública e do
nosso ensino em geral. Dispomos de uma cornucópia maligna de dados
terrificantes. Em contrapartida, capitais brasileiros refugiados em
paraísos fiscais somam uma extravasante importância que coloca os
graúdos nativos em quarto lugar entre os maiores evasores globais.
É
do conhecimento até do mundo mineral que o desequilíbrio social é o
maior problema do País. Dele decorrem os demais. Entrave fatal para o
exercício de um capitalismo razoavelmente saudável. E evitemos tocar na
tecla do desenvolvimento democrático. Mas quantos não se conformam? Não
serão, decerto, os ricos em bilhões, e a turma dos aspirantes, cada
vez mais ostensivos na exibição de seu poder de compra e de seu mau
gosto. Não serão os profissionais da política, sempre que não soe a
hora da retórica. Não será a mídia, concentrada no ataque a tudo que se
faça em odor de PT, ou em nome da igualdade e da justiça.
Nada
de espantos, o Brasil ainda vive a dicotomia casa-grande–senzala.
CartaCapital e especificamente o acima assinado queixam-se com
frequência do silêncio da mídia diante de situações escusas, de
denúncias bem fundamentadas, de provas irrefutáveis de mazelas sem
conta. Penso no assunto, para chegar à conclusão de que há algo pior.
Bem pior. Trata-se da insensibilidade diante da desgraça, da miséria, do
atraso. Da traição cometida contra o País que alguns canalhas chamam
de pátria.
Exemplo recentíssimo. Há quem lamente os resultados
relativamente medíocres dos atletas brasileiros nas Olimpíadas de
Londres. Parece-me, porém, que ninguém se perguntou por que um povo tão
miscigenado, a contar nas competições esportivas inclusive com a
potência e a flexibilidade da fibra longa da raça negra, não consegue
os mesmos resultados alcançados em primeiro lugar pelos Estados Unidos.
Ou pela Jamaica. Responder a este por que é tão simples quanto a tudo o
mais. O Brasil não é o que merece ser, e está muito longe de ser, por
causa de tanto descaso, de tanto egoísmo, de tanta ferocidade. De tanta
incompetência dos senhores da casa-grande. Carregamos a infelicidade
da maioria como a bola de ferro atada aos pés do convicto.
Mesmo
o remediado não se incomoda se um mercado persa se estabelece em cada
esquina. Basta erguer os vidros do carro e travar as portas. Outros nem
precisam disso, sua carruagem relampejante é blindada. Ou dispõem de
helicóptero. Impávidos, levantam seus prédios como torres de castelos
medievais e das alturas contemplam impassíveis os casebres dos servos
da gleba espalhados abaixo. A dita classe média acostumou-se com os
panoramas da miséria, com a inestimável contribuição da mídia e das suas
invenções, omissões, mentiras. E silêncios.
Às vezes me ocorre a possibilidade, condescendente, de que a insensibilidade seja o fruto carnudo da burrice.